Desmilitarizar a Polícia Já!
O Estado capitalista brasileiro ainda mantém vivas algumas instituições da ditadura militar. A Constituição de 1988 não conseguiu acabar com elas, particularmente com a Polícia Militar. A militarização das polícias foi criada por um decreto-lei da Ditadura de 1969, portanto, a Polícia Militar “é uma invenção, uma criação da ditadura”. No decreto a polícia militar é tratada como força auxiliar e reserva do exército. É um entulho autoritário, foi uma herança da ditadura e, portanto, onde a polícia sempre vê, no civil, um inimigo. A formação do militar é destinada a prepará-lo para enfrentar o inimigo, vencê-lo e submetê-lo à sua vontade, isso é ser militar; não tem nada com ser polícia.
No Brasil de hoje e de sempre as lutas são muitas. Os explorados e oprimidos confiam cada vez mais em suas próprias forças para mudar a vida. E a resposta dos governos, a mando dos patrões e dos interesses econômicos dos grandes grupos, é quase sempre a mesma: repressão, perseguição e demissão. O movimento é criminalizado e a democracia pisoteada. Não é à toa que a PM é hoje uma das instituições mais desgastadas do país.
A mesma polícia que reprime e que está muito bem preparada para enfrentar os atos e greves de trabalhadores é a mesma que na maioria das vezes não garante a segurança da população mais pobre de nosso País.
Ao contrário do se pensa, polícia não significa segurança. Na democracia dos ricos em que vivemos, a impunidade é um “direito” concedido aos ricos e brancos. Aos pretos e pobres, resta uma pena de morte informal.
Corrupção, baixos salários, milícias e tráfico de drogas
No Brasil capitalista de hoje, que gera a violência urbana, também gera essa polícia a sua imagem e semelhança. A PM é uma estrutura corrupta, que paga mal e exige muito, e envolvida com milícias e com o tráfico de drogas, funciona para proteger os interesses de uns poucos patrões e para impedir que tudo fique como está, que nada mude.
A estrutura está podre, é preciso algo novo, diferente, onde a classe trabalhadora oriente seu funcionamento e objetivos. Não é possível humanizar nem conferir a PM um caráter mais social. Todo manifestante ou jovem da periferia conhece bem o papel social da PM.
O que significa desmilitarizar?
A desmilitarização representará um passo muito importante na transformação radical dessa polícia racista e tão antagônica aos pobres e trabalhadores, nos marcos da luta contra a democracia dos ricos e seu poder econômico, com os trabalhadores e jovens nas ruas. Isso significa acabar com a polícia, reformulando profundamente o modelo de segurança pública e, necessariamente, a própria sociedade.
É preciso unificar as polícias em uma única força de segurança civil, ou seja, fora do controle das Forças Armadas. Assim, as atividades de investigação e policiamento constituiriam o trabalho policial de uma única força sem a lógica de atuação de hoje: a de um exército em guerra contra a maioria da população. Prova disso é a existência da tropa de choque, sempre pronta a dispersar as manifestações populares.
A militarização também faz com que os crimes policiais sejam julgados pelos próprios militares. Isso é um privilégio inaceitável e muitas vezes leva à impunidade: os responsáveis pelas barbaridades em junho nunca foram punidos! É necessário acabar com a justiça militar.
Todos os policiais têm que ser funcionários públicos com o direito de formar sindicatos, fazer greve e desobedecer seus superiores quando tiverem ordens de atirar em trabalhadores e jovens. Para isso também têm que ter direito à livre manifestação política, expressando as demandas da base da hierarquia militar de hoje, formada por filhos da classe trabalhadora.
Além disso, os trabalhadores e o povo pobre devem ter mecanismos de controle democráticos sobre a segurança pública, como a eleição dos delegados de cada cidade ou zona. Somente desse modo diminuiriam os abusos policiais.
Desmilitarização da polícia já!
Fim da Tropa de Choque!
Por uma força de proteção à população, sob controle dos trabalhadores e do povo pobre!
Veja a seguir entrevista de Luiz Eduardo Soares
Lições de Marielle
A polícia e a política se fundiram de forma inextricável assim como se interligaram, organicamente, a economia das drogas, a economia informal e a economia formal -também chamada “legal”.
PARA A PM, PRODUZIR É SINÔNIMO DE PRENDER, DIZ LUIZ EDUARDO SOARES
Em seu novo livro, “Desmilitarizar”, antropólogo critica a lei de drogas, defende a desmilitarização da polícia e mostra que a segurança privada informal é a matriz das milícias
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares lista em seu livro Desmilitarizar “os inimigos” a serem vencidos para o Brasil baixar o índices de homicídios.
Defendendo a desmilitarização da Polícia Militar e uma mudança na lei das drogas, o antropólogo Luiz Eduardo Soares lançou seu novo livro recentemente pela Boitempo. O escritor foi também secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro e autor de “Elite da Tropa”, que deu origem ao filme Tropa de Elite.
- O senhor dedica seu novo livro, Desmilitarizar, às mães dos policiais e dos jovens mortos no que chama de “guerra fratricida”. E diz que elas são “irmãs na dor, e que o inimigo está em outro lugar”. Quem é “o inimigo”?
O inimigo não tem rosto, não é um indivíduo, são mecanismos que construímos como nação, diante da história de nosso país, profundamente marcada pela desigualdade e pelo racismo estrutural, e que funcionam de modo a potencializar os aspectos negativos da institucionalidade.
- Que mecanismos?
No Brasil, temos um número incrivelmente elevado de homicídios dolosos, que é nosso grande problema hoje. Tivemos no ano passado 62 mil homicídios. Os números são muito precários, a taxa de esclarecimento de homicídios não é consistente nem segura. Os casos resolvidos são mínimos. A taxa de impunidade é em torno de 90%. Mas não podemos dizer que o Brasil é o paraíso da impunidade. Porque temos a terceira população penitenciária do mundo e a que cresce com mais celeridade desde 2002. Aí, existe um paradoxo. Certamente estamos prendendo mal e há uma inversão de prioridade. Quando vamos olhar quem está preso, há aproximadamente 800 mil presos. Digo aproximadamente porque o número também é precário. Desses, 13% cumprem pena por homicídio. A enorme maioria está lá por crime contra o patrimônio e tráfico de drogas. Crimes contra a mulher estão crescendo, mas ainda é pouco em comparação com os dois primeiros. Há um subuniverso que cresce muito mais aceleradamente que o universo. Grupos que transgrediram a lei de drogas, ou seja, que traficaram. São 28% dos 800 mil. Esses grupos cresceram velozmente depois de 2007, o que tem a ver com a mudança que a lei sofreu em 2006.
- Qual mudança?
Em 2006, deixou de existir a distinção, pela quantidade de drogas apreendida com algum portador, entre traficante e usuário. E essa diferenciação ficou a cargo do juiz, independentemente da quantidade. Na prática, as pesquisas mostram que, se o réu é branco de classe média, o juiz na maioria das vezes o julga como usuário. O preso como traficante é negro e pobre. Isso é compreensível, porque o juiz é parte da sociedade brasileira e tende a repetir a cabeça média do brasileiro.
- Então a lei de drogas é um dos mecanismos que o senhor chama de inimigo no começo do livro?
Sim. O contexto histórico-social brasileiro, a lei de drogas e o modelo policial.
- Aí entramos num dos eixos do livro, sobre a desmilitarização da polícia.
Isso. A polícia mais numerosa e presente no Brasil é a militar, que é proibida de investigar, segundo a Constituição. Mas, embora seja proibida, ela é pressionada por todos os lados a produzir. Pelo governador, pelo secretário de Segurança, pela imprensa, pela sociedade de uma maneira geral. A PM entende que produzir é sinônimo, em linhas gerais, de prender. Existem estados que têm cotas de encarceramento. O Rio de Janeiro tinha até recentemente. Se a PM não pode investigar, mas tem de prender, ela prende da maneira mais fácil, que é prender em flagrante. Não tem alternativa.
- Por que prender em flagrante é mais fácil?
Não é que seja mais fácil. Quais são os crimes passíveis de flagrante? Esses constituirão todos os focos da PM. Os flagrantes são os crimes que são perceptíveis aos cinco sentidos, ou seja, que o policial possa, com os cinco sentidos, flagrar. Lavagem de dinheiro é passível de flagrante? Não. Organização criminosa é? Não. E tráfico internacional? Também não. Tudo que envolve organização em grande escala, que envolve mais poder e mais risco, tudo isso, esses agentes empreendedores do crime, que de fato fazem a diferença sobre o impacto no combate ao crime, requer investigação para acontecer.
- Por isso o número tão alto de aviõezinhos presos, os jovens que levam e trazem drogas para usuários?
Isso. A PM prende os mais fáceis de prender. Isso não é discurso ideológico ou retórico apenas. Isso é factível. A polícia vai prender em territórios mais vulneráveis, onde essas transações de substâncias ilícitas em pequenas quantidades estão à vista de todos. O atacado, as grandes quantidades de drogas, dificilmente são objeto de flagrante. O pequeno negócio é onde se dá o flagrante. E há mais um dado.
- Qual?
Para a polícia entrar num condomínio, precisa de uma ordem judicial. Pressupõe alguma investigação. Como a Polícia Militar é operacional — não por escolha do governador ou do comandante, mas porque assim determina a Constituição —, ela não consegue investigar e não consegue subsidiar um pedido de ordem judicial para entrar em um condomínio.
- Qual foi sua opinião sobre o programa anticrime do governo?
A pior possível. O excludente de ilicitude é um passaporte para a execução policial. Já existem na lei todos os recursos de legítima defesa. O policial já tem isso assegurado. O excludente de ilicitude já está funcionando como uma sinalização para a ponta de que eles podem executar pessoas sem limites. Também sou contra o plea bargain ( negociação da admissão de culpa ). É o fim do inquérito policial, uma vez que o MP vai ser o titular da negociação para que o suspeito aceite os termos negociados ou admita a culpa, deixando a polícia e a Justiça distante de tudo isso. O efeito que isso teve nos Estados Unidos foi incrementar muitíssimo o encarceramento, que, como falei, é outro problema nosso. O pacote também aponta na direção da extensão de penas, ignorando que as análises mais sérias no Brasil mostram que o encarceramento é negativo e deveria se limitar a casos excepcionalmente graves e não ser algo frequente que fortalece as organizações criminosas.
- O senhor aponta que é difícil convencer a opinião pública de que não é uma boa medida liberar policiais a abater criminosos. Por quê?
É difícil porque os que morrem não são os integrantes das camadas médias da sociedade, que formam o que chamamos de opinião pública. É fácil aceitar isso quando não é você que está vivendo. E também há um raciocínio simplista que se reitera ano após ano, que é a suposição de que, estando numa guerra, você precisa de mais e mais força para derrotar inimigos. Segundo esse raciocínio, só restaria fazer mais do mesmo, com cada vez mais força.
- O senhor é crítico da intervenção federal no Rio de Janeiro e afirma que as Forças Armadas não têm preparo para atuar na segurança pública e foram instrumentalizadas por interesses políticos do governo Temer. Por quê?
Primeiro, deixe-me frisar um ponto sobre os números da intervenção. Houve uma queda de 6,7% de homicídios dolosos. O número final é de 4.127 homicídios dolosos. Esses números são de 1º de janeiro a 18 de dezembro de 2018, ou seja, pode haver uma atualização dos 13 dias restantes do ano. Nesse período, houve aumento de 36,3% de mortes pela polícia, num total de 1.287 pessoas. Somando os dois números absolutos, há um total de 5.414 mortos. Esse total de vítimas é superior ao que tivemos em 2017, quando somamos os dois números e o total foi 5.366. Portanto, houve aumento de pessoas mortas.
- Mas qual seria a alternativa naquele momento?
Os grandes desafios do Rio de Janeiro são conseguir que a investigação seja independente e forte o suficiente para cortar na carne das polícias e tenha capacidade de conter o fluxo de armas, que é a questão decisiva no estado. Tem de haver uma repactuação com as comunidades, para se criar um ambiente de segurança e respeito, porque elas se sentem muito inseguras com essas operações policiais, que causam mortes de suspeitos, de policiais e de cidadãos que não têm nada a ver com isso.
- No livro, o senhor alerta para o risco de a segurança privada fortalecer as milícias. Por que há essa relação em sua visão?
A segurança privada informal e ilegal é a matriz das milícias. Existe no estado do Rio a proibição do segundo emprego do policial, quando é na segurança privada. Como os policiais ganham mal, eles tentam complementar sua renda, isso é natural. Todo mundo faz isso. É natural que busquem emprego na segurança privada. Isso é ilegal, mas eu não considero desonesto, porque é o trabalhador procurando complementar sua renda. Embora caiba por lei à Polícia Federal fazer a supervisão da segurança privada, a PF não cumpre esse papel a contento, em parte porque não tem interesse em investigar, mas também porque não tem homens e mulheres suficientes. Os governos, portanto, fazem cara de paisagem para seu policial atuando na segurança privada. Não interessa fazer pressão sobre os policiais, porque, caso o façam, a pressão por melhores salários será ainda maior. Vamos lembrar que, em geral, no Brasil, o salário do policial não garante a ele uma vida digna.
- Mas qual é o risco?
O risco é porque, embora haja os bem-intencionados, há também outros casos. Existem, por exemplo, policiais que são próximos entre si e que criam uma empresa informal e oferecem segurança a um condomínio ou a moradores de algumas ruas tranquilas, que não precisariam de reforço da segurança. Os moradores dessa região inicialmente recusam, dizendo que o preço cobrado está caro e que não há necessidade. Diante da recusa, coincidentemente, carros na região começam a ser arrombados. E aí a mensagem é compreendida e, sob chantagem, os moradores acabam aceitando. Quem tenta romper um contrato desse tipo corre risco de morrer. Foi o caso do irmão do deputado Marcelo Freixo, assassinado em Niterói, quando, eleito síndico em seu condomínio, descobriu a ilegalidade de um desses contratos e acabou assassinado. Esses grupos se tornam milícias à medida que percebem que lucrariam muito mais do que com o tráfico. Essas milícias são filhas bastardas da omissão do Estado sobre a segurança privada ilegal.
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