O direito de sonhar e delirar. O direito à utopia, por Eduardo Galeano

Nesses tempos de desesperança vale uma palavra de esperança e de luta por um mundo melhor.
A classe trabalhadora, na sua dura sobrevivência merece conquistar o direito a viver em paz, com dignidade e sem sofrimento. Eduardo Galeano, escritor uruguaio falecido em 2015, deixou linda mensagem, que reproduzimos abaixo. Se deleite no seu depoimento, no poema e no vídeo em que ele fala do depoimento e declama o poema:

utopia

‎”[…] em Cartagena das Índias, há algum tempo, quando eu estava na universidade fazendo uma espécie de palestra com um grande amigo, diretor de cinema argentino, Fernando Birri. E então os meninos, os estudantes, faziam perguntas – às vezes a mim, às vezes a ele. E fizeram a ele a mais difícil de todas: um estudante se levantou e perguntou “Para que serve a utopia?”
Eu o olhei com dó, pensando “uau, o que se diz numa hora dessas?”, e ele respondeu estupendamente, da melhor maneira. Ele disse que a utopia está no horizonte, e disse “Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo”.
Boa pergunta, não? Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar.”

O direito de sonhar
O direito ao delírio

Que tal se delirarmos por um tempinho
Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?

O ar estará mais limpo de todo o veneno que

Não provenha dos medos humanos e das humanas paixões.

Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães.

As pessoas não serão dirigidas pelos carros
Nem serão programadas pelo computador.

Nem serão compradas pelos supermercados

Nem serão assistidas pela TV,
A TV deixará de ser o membro mais importante da família,
Será tratada como um ferro de passar roupa
Ou uma máquina de lavar.

Será incorporado aos códigos penais

O crime da estupidez para aqueles que a cometem

Por viver só para ter o que ganhar

Ao invés de viver simplesmente
Como canta o pássaro em saber que canta
E como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os jovens

Que se recusem ao serviço militar
Senão aqueles que queiram servi-lo.

Ninguém viverá para trabalhar.

Mas todos trabalharemos para viver.
Os economistas não chamarão mais
De nível de vida o nível de consumo
E nem chamarão a qualidade de vida
A quantidade de coisas.

Os cozinheiros não mais acreditarão

que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres
Se encantam em comer promessas.

A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude,

E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de rir de si mesmo.
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes

E nem por falecimento e nem por fortuna

Se tornará o canalha em virtuoso cavalheiro.

A comida não será uma mercadoria

Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome

Porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo
Porque não existirão crianças de rua.
As crianças ricas não serão como se fossem dinheiro
Porque não haverá crianças ricas.

A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la

E a polícia não será a maldição daqueles que podem comprá-la
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas
Condenadas a viver separadas
Voltarão a juntar-se, bem agarradinhas,
Costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo

Serão um exemplo de saúde mental
Porque elas se negaram a esquecer
Os tempos da amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá

Algumas erratas das Taboas de Moisés,
E o sexto mandamento mandará festejar o corpo.
A Igreja ditará outro mandamento que Deus havia esquecido:
“Amarás a natureza, da qual fazes parte”

Serão reflorestados os desertos do mundo
E os desertos da alma
Os desesperados serão esperados
E os perdidos serão encontrados
Porque eles são os que se desesperaram por muito esperar
E eles se perderam por tanto buscar.

Seremos compatriotas e contemporâneos
De todos o que tenham
A vontade de beleza e vontade de justiça
Tenham nascido quando tenham nascido
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem importarem nem um pouquinho
As fronteiras do mapa e do tempo.

Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo, trapalhão e fodido,
Seremos capazes
De viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.

Eduardo Galeano

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