Radiofármacos: Impactos da quebra do monopólio na produção e comercialização

ASSIPEN Associação dos Servidores do IPEN / outubro 2020

Impactos da quebra do monopólio na produção e comercialização de radiofármacos no Brasil

Está sendo realizada pelo Governo Federal uma grande reformulação do Programa Nuclear Brasileiro. Entre as mudanças propostas está a quebra do monopólio na produção e comercialização de radiofármacos de meia-vida[1] longa (maior que duas horas). Os impactos desta medida, que exige uma mudança na Constituição Federal, precisam ser discutidos a fundo pela sociedade e por especialistas do setor com toda a seriedade que este assunto merece. E isso, a nosso ver, não está ocorrendo. Este texto tem como objetivo contextualizar e levantar alguns pontos para a referida discussão.

Atualmente, a maior parte da produção de radiofármacos no Brasil é realizada por Institutos Públicos de Pesquisa vinculados à Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN. Dentre elas, se destaca a produção realizada pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN, localizado no campus da Cidade Universitária da USP, em São Paulo.

A produção de radiofármacos se iniciou no IPEN em 1959, três anos após sua fundação, com a produção do Iodo-131 para tratamento de doenças da tireoide. Desde então, o crescimento da Medicina Nuclear no país exigiu, cada vez mais, o desenvolvimento e fabricação de novos produtos. O IPEN foi fundamental neste processo possibilitando a ampliação da disponibilidade de novos radiofármacos à sociedade. O que era inicialmente uma produção experimental acabou por se transformar em uma indústria radiofarmacêutica com indicadores relevantes.

O portfólio atual do Instituto conta com 25 tipos diferentes de radiofármacos. A importância da Radiofarmácia do IPEN para a Medicina Nuclear brasileira é extremamente significativa, na medida em que aproximadamente 85% de todos os radiofármacos utilizados para exames e tratamentos no Brasil são produzidos no Instituto.

Cabe ressaltar que, durante esses mais de 60 anos, o Instituto cumpriu, por meio da atuação dedicada de seus profissionais, o seu papel de principal fornecedor de radiofármacos para clínicas e hospitais instaladas por todo o país. Inclusive, em conjunturas extremamente adversas, como a atual, de pandemia causada pela COVID-19, com o atendimento de 100% da demanda.

Afinal, o que são radiofármacos?

Os radiofármacos são medicamentos compostos de um elemento não radioativo (carregador ou ligante) e um elemento radioativo (radioisótopo ou radionuclídeo) utilizados em Medicina Nuclear. O radioisótopo, associado a uma molécula de endereçamento, marca a célula-alvo permitindo a realização de diagnósticos e/ou terapias de uma grande quantidade de enfermidades relacionadas ao sistema cardíaco, neurológico e a diversos tipos de câncer.

Geradores de 99Mo/99mTc

O principal radioisótopo utilizado na Medicina Nuclear é o 99mTc (Tecnécio – 99 metaestável). O Tecnécio é o primeiro elemento químico radioativo criado artificialmente pelo homem e ele tem a meia-vida ideal para procedimentos diagnósticos: seis horas. Portanto, o 99mTc é um radioisótopo de meia-vida longa. Os geradores de 99Mo/99mTc (Figura 1) são produzidos no IPEN há mais de 40 anos. Com o 99mTc é possível marcar moléculas de interesse biológico, como uma das 13 formulações liofilizadas também produzidas e comercializadas pelo IPEN. Estes radiofármacos são responsáveis por 80% de toda a atividade de Medicina Nuclear do país, e o IPEN é o único produtor de gerador de 99mTc no Brasil. Atualmente, mais de 430 clínicas e hospitais em todo o país são clientes do IPEN. Os outros 20% dos procedimentos correspondem a terapias que usam produtos fornecidos pelo IPEN, como o Iodo-131, citado anteriormente, e de PET/CT, que usam produtos de cíclotron -acelerador de partículas.

Figura 1: Gerador de 99Mo/99mTc produzido e disponibilizado pelo IPEN para todo o país.

O IPEN importa o radioisótopo 99Mo três vezes por semana (suficiente para suprir a demanda nacional) de alguns países fornecedores, como a Rússia, África do Sul e Holanda.

Figura 2: Logística de produção e distribuição do principal radiofármaco usado em Medicina Nuclear

O IPEN está localizado próximo a dois principais aeroportos internacionais, o de Guarulhos e o de Viracopos (GRU e VCP). Assim, a logística de distribuição é otimizada, garantindo o fornecimento inclusive durante a pandemia. A demanda nacional por geradores de 99Mo/99mTc é de aproximadamente 400 Ci (Curie é unidade de medida de atividade radioativa). O custo da matéria prima 99Mo para a União é de US$ 600-700/Ci. Devido à característica única de decaimento radioativo dos radioisótopos, um único dia de atraso devido a problemas na malha aérea internacional e nacional pode significar cerca de R$400.000,00 a mais num lote de produção. O Brasil se prepara para a produção nacional deste radioisótopo com a construção, em Iperó-SP, do Reator Multipropósito Brasileiro – RMB. O RMB está sendo projetado para produzir no mínimo 1.000 Curies de 99Mo /semana.

Expansão da Quebra do Monopólio da União

A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu o monopólio da União para a produção de radioisótopos e radiofármacos. Em 2006, após vários anos de debate, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 49, de 8 de fevereiro de 2006, que excluiu desse monopólio a produção, comercialização e a utilização de radiofármacos e radioisótopos de meia-vida curta, para usos médicos, agrícolas e industriais.

O que está sendo recolocada na agenda legislativa pelo Governo Federal, neste momento, é a extensão da quebra do monopólio para radiofármacos e radioisótopos de meia-vida longa. A estratégia do Governo Federal é resgatar uma PEC antiga do Senador da República Álvaro Dias do Podemos/PR, a PEC 100. A referida PEC foi aprovada no dia 03 de agosto de 2010, no Senado Federal, e foi encaminhada para a apreciação da Câmara dos Deputados, onde passou a ser enumerada PEC 517/10. O parecer do relator, deputado Cesar Colnago (PSDB-ES), na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que indicava a admissibilidade da matéria, foi aprovado no dia 03 de julho de 2013. O que falta, neste momento, é a Câmara montar uma comissão especial para analisar a matéria e depois submetê-la ao plenário.

Representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) vêm conversando com diversos deputados para convencê-los sobre a importância da aprovação da referida PEC e estão mobilizando-os na defesa da formação da Comissão Especial e na tramitação rápida da matéria, para que seja levada ao plenário sem as discussões técnicas necessárias. O que se espera é que o debate seja amplo, transparente e alicerçado na verdade, o que não vem ocorrendo até o momento.

Há vários elementos que devem ser levados em consideração antes da tomada desta decisão e que merecem discussão aprofundada, são eles:

  1. A democratização da Medicina Nuclear passa, necessariamente, por um aumento no número de clínicas e hospitais, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do País, e de um aumento do número de procedimentos cobertos pela tabela SUS, pois o IPEN atende toda a demanda requerida. É preciso também elevar o número de profissionais habilitados para a prática: médicos, físicos médicos, tecnólogos, biomédicos e farmacêuticos. O IPEN colabora neste ponto com seus dois programas de pós-graduação e instalações dedicadas à produção de radiofármacos, radioproteção, calibração de equipamentos usados na clínica e outros.
  2. Os percalços no fornecimento de radiofármacos são decorrentes da falta de recursos para modernização das instalações do IPEN e falta de mão de obra para execução de atividades necessárias para obtenção de registros definitivos dos produtos, após novas regulamentações da ANVISA;
  3. As operações do setor privado ficarão concentradas nos mercados mais vantajosos\lucrativos (clínicas privadas de SP, RJ) e em produtos com maior interesse financeiro para a empresa e não nos que pode gerar mais benefícios à sociedade;
  4. Possível risco de desabastecimento caso as empresas privadas decidam sair do negócio e o setor público não tenha mais estrutura adequada para produção;
  5. Impacto no projeto do RMB, caso as empresas multinacionais optem por importar o Molibdênio de seus reatores no exterior;
  6. Mercado restrito, impossibilitando grande concorrência. As clínicas e hospitais ficariam reféns de majoração de preços em um mercado com poucos players (oligopólio privado);
  7. Impacto do câmbio na formação dos preços, grande flutuação pode dificultar o planejamento financeiro de clínicas e hospitais;
  8. O registro definitivo de um radiofármaco na ANVISA por uma empresa privada causaria de imediato a paralisação da produção pública, devido às normas da ANVISA em vigor;
  9. Perda de know-how do setor público, acarretando aumento da dependência tecnológica do país.

Convém ressaltar que o texto acima foi debatido e escrito por um grupo de servidores da área técnica preocupados com as consequências que a aprovação desta PEC pode causar na expansão da utilização dos radiofármacos, pela população brasileira, em particular a mais carente, atendida pelo SUS.

O mesmo foi encaminhado à ASSIPEN (Associação dos Servidores do IPEN) que, por sua vez, saúda a iniciativa, incorpora a preocupação e assume como parte das posições da Associação.

Queremos aproveitar e fazer algumas considerações sobre o assunto, explicitando, desde já, que entendemos a quebra desse monopólio como danosa à saúde da população brasileira, pois está claro que o que se vislumbra, de verdade, é mais uma oportunidade de lucro envolvendo a Saúde da população. Nossa luta sempre foi para que os radiofármacos, desenvolvidos e produzidos por uma instituição pública, não deve ser objeto de lucro, mas, ao contrário, deve ser disponibilizado pelo SUS a todos os que dele necessitarem!


A frágil argumentação pela a quebra do monopólio de radiofármacos e a sede pelo lucro

A partir de 2006, o grande argumento utilizado pelos defensores da quebra do monopólio de radiofármacos de meia-vida curta é totalmente descabido: o de que estes radiofármacos “por terem uma vida curta”, somente são distribuídos no eixo Rio-São Paulo. Seguem dois vídeos e uma declaração do Senador Álvaro Dias (Podemos), proponente da PEC em discussão, que retrata bem a argumentação utilizada:

https://www.youtube.com/watch?v=EamBPaZZ_9E (2011 Retrospectiva 2010)

https://www.youtube.com/watch?v=SDCJbwqv09Y (apelo pela aprovação na Câmara)

https://alvarodias.com.br/2020/08/13/projeto-de-alvaro-dias-que-quebra-monopolio-sobre-a-producao-de-radioisotopos-ganha-forca-na-camara/

“Álvaro Dias assinala que, devido ao curto período de vida dos produtos, que não vai além de duas horas, os radioisótopos, na prática, não podem ser utilizados fora dos grandes centros urbanos do país. “

“Vidas se perdem porque o produto não chega a tempo. A quebra desse monopólio então é essencial porque a produção dos radioisótopos no Brasil não atende a 50% da demanda”, explica o líder do Podemos.

Os argumentos usados pelo senador, há mais de dez anos, são os mesmos que foram utilizados para aprovar, em 2006, a quebra do monopólio dos radioisótopos de meia-vida curta (menor que duas horas). Se já naquela oportunidade não eram verdadeiros, no caso dos radioisótopos de maior meia-vida, beira o absurdo!

Primeiro porque, conforme citado acima, há 20 anos o IPEN fornece os radioisótopos para todo o país, possuindo uma estrutura logística segura e eficiente que garante essa distribuição. No entanto, por questão de segurança nuclear, somente clínicas e hospitais credenciados, a partir de toda uma estrutura técnica adequada e de pessoal qualificada, podem manusear estes materiais radioativos. Ou seja, a expansão dos radiofármacos não está represada na sua produção; é preciso que a outra ponta esteja apta a utilizá-lo

Há falhas na distribuição? Eventualmente pode ocorrer atraso, mas por problemas relacionados ao transporte aéreo, e não por conta do fornecimento. E estes atrasos não serão sanados com a quebra do monopólio!

A segunda questão se refere à real aplicação dos procedimentos com radiofármacos. A grande maioria desses procedimentos é para a fase de diagnósticos e não para tratamento de enfermidades. Longe de querer reduzir a importância dos radiofármacos, em nome da transparência e da verdade, é preciso combater a visão de que os pacientes podem morrer de um dia para o outro pela falta destes medicamentos.

Interessante observarmos o que ocorreu após a quebra do monopólio dos radioisótopos de meia-vida curta, em 2006. Nos últimos 14 anos, a atuação da iniciativa privada se concentrou nas capitais do Sul e Sudeste, onde evidentemente há retorno dos investimentos. Não ocorreu a propalada “democratização” da utilização destes radiofármacos.

Por fim, vale comentarmos o Plano de Orientação Estratégica 2019-2022 elaborado pela atual direção da CNEN, que defende a quebra do monopólio. Seus principais argumentos são:

“Há, portanto, um visível esgotamento do atual modelo de gestão voltado à produção que pode ser resumido no agravamento de dois problemas centrais:

– O primeiro é decorrente do regime jurídico a que está submetida a mão de obra que opera na linha de produção e a falta de recrutamento de novos profissionais para dar continuidade a produção diante de uma demanda crescente. Há falta de pessoal associada a incompatibilidade entre o Regime Jurídico Único dos servidores e o processo produtivo.

– O segundo, igualmente relevante, se resume na falta de flexibilidade na gestão orçamentária e financeira de uma atividade produtiva com fins comerciais dentro de um instituto público de pesquisa. Esta flexibilidade é necessária em se tratando de um processo extremamente dinâmico do ponto de vista da demanda. No contexto da CNEN, a produção de radiofármacos depende do orçamento fiscal do Governo Federal. Os sucessivos cortes no orçamento dificultam a continuidade das operações. Há uma recorrente incongruência na operação, pois faturar mais não significa que se possa contar com o acréscimo de recursos necessário para fazer frente à elevação do custeio. O grande problema que esta situação gera é a insegurança que traz, pois em nenhum momento há certeza de que tais recursos virão ou se a quantidade será suficiente. Desta forma, o acréscimo de produção e de vendas passa a ser um problema e não uma oportunidade do ponto de vista da gestão do negócio.”

Os dois problemas apontados são reais, mas não justificam a quebra do monopólio. O próprio documento aponta uma das possíveis saídas para os problemas: “Alterar o atual e esgotado modelo de gestão voltado à produção, para um que assegure flexibilidade na contratação de mão de obra e sustentabilidade financeira da produção.”

O Plano da CNEN possui ainda outras partes reveladoras:

O tempo médio estimado para que o país passe a contar com empresas privadas fornecendo radiofármacos ao setor de medicina é, aproximadamente, de 5 (cinco) anos. Portanto, dentro desse horizonte temporal é imprescindível que sejam garantidas as condições de fornecimento da CNEN, a fim de evitar a paralisação dos serviços de radiodiagnóstico em todo o território nacional.”

Como o atual modelo de gestão garantirá o fornecimento dos radiofármacos que o país necessita por mais 5 anos? Se consegue manter o fornecimento por mais 5 anos, com alterações não conseguirá por mais 5? E por mais 5?

Mas vai além! O Plano da CNEN aponta outro problema:

“Outro aspecto importante a ser mencionado refere-se ao fato de que muitos desses serviços encontram-se nas regiões distantes dos grandes centros urbanos e que deverão ser deixados em segundo plano pelos fornecedores privados. Isso exigirá que a CNEN continue atendendo a essas localidades, da mesma forma como vem fazendo até então. Para que isso ocorra, é necessário que se altere o modelo de gestão da produção de radioisótopos e radiofármacos nas Unidades da CNEN.”

Ou seja, a iniciativa privada atuará nos grandes centros urbanos, onde haverá lucro, e ao Estado caberá continuar fornecendo às regiões distantes. Mas isso não vai contra os argumentos anteriores para a quebra do monopólio?

Mais duas observações em relação ao Plano da CNEN, que afirma:

Recentemente, houve uma mudança de entendimento, por parte da CNEN, a respeito da abrangência deste monopólio. Passou-se a adotar o entendimento de que apenas a produção e comercialização de radiofármacos derivados de minérios radioativos estão sob monopólio. O único radiofármaco produzido e comercializado pela CNEN e abrangido pelo monopólio constitucional, portanto, é o 99mTc, por ser derivado do Urânio. Para todos os demais radiofármacos, mesmo os de meia-vida longa não derivados de minérios radioativos não haveria monopólio constitucional”. (grifo nosso)

Nos parece estranho que um órgão ligado ao Executivo Federal mude seu entendimento com relação a uma matéria constitucional. Se houve a necessidade da aprovação de uma Emenda Constitucional para a quebra do monopólio referente aos radioisótopos de meia-vida curta, não seria o caso de toda a matéria relacionada ao tema passar por análise legislativa?

Por que ressurge esta PEC, após 10 anos, justamente quando o Estado brasileiro fará um enorme esforço para ter autonomia na produção de radioisótopos, com o investimento de USD 500 milhões na implantação do Reator Multipropósito (RMB)?

Os argumentos utilizados não justificam a quebra do monopólio, a não ser pela visão privatista que vem tendo predominância nos governos brasileiros.

Pelas consequências, pelas questões técnicas e de segurança envolvidas e pela relevância do tema, é fundamental que o Parlamento Brasileiro promova um debate profundo e amplo envolvendo toda a sociedade civil.


[1] A meia-vida é o tempo necessário para que a taxa de decaimento de uma amostra radioativa seja reduzida à metade do seu valor inicial. A meia-vida curta é definida como tendo menos de duas horas.

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